terça-feira, 15 de abril de 2014

De meu amor pelas coisas mínimas

Meu mundo subatômico: um dia habitado por aranhas e bolhas de sabão, hoje é constituído por fotografias. (1)


Não foi sem espanto que o século 20 se deparou com a potência do mundo subatômico. Um mundo composto por partículas mínimas que estruturam o que entendemos por realidade concreta e obedecem a uma lógica  própria.

Da explosão de Hiroshima ao desenvolvimento vertiginoso das telecomunicações, a humanidade se viu, a um só tempo, aterrorizada e maravilhada diante do vigor do inimaginavelmente pequeno.

Quanto a mim, sempre tive meu mundo subatômico particular. Talvez por isso nunca tenha me espantado o poder das coisas diminutas. Mais que isso: sempre tive consciência de seu potencial.

Na minha vida de criança, essa consciência revelou-se de forma sui generis e nada glamourosa. Meu respeito pelo mínimo se traduziu numa atitude extremamente temerosa – e um tanto quanto neurótica – de enxergar  perigos imensos em coisas pequeníssimas, como um estranho cisco (quase invisível) que viera parar bem no meu prato; ou uma acanhada aranha que se aproximava perigosamente.

O fato é que eu temia mais uma formiga do que uma onça.

Idiossincrasias à parte, meu interesse por mundos pequenos também teve uma face mais poética. Longe dos perigos de ciscos, aranhas e formigas,  eu descobrira as bolhas de sabão. Para espanto materno, passava longos minutos observando os mundos intangíveis que se refletiam nas pobres – e breves – bolhas.

Também cultivei secretamente o hábito de decifrar os desenhos escondidos nos veios de madeiras e de pedras como o mármore. Na minha imaginação, esses veios, aparentemente abstratos, guardavam mensagens misteriosas que pediam por compreensão.

Mas por que tanto amor pelo insignificante, com tantas coisas maiores e mais reluzentes esperando para serem amadas?

Ora, eu poderia fazer mil e uma leituras psicológicas, como atribui-lo ao fato de eu também me sentir pequena, ou outra coisa qualquer.

Mas acho que, no fundo, posso dizer que meu interesse pelo que não tem amplitude vem da obviedade de que ele é, em si, muito interessante.

O pequeno não é apenas uma parte desse mundo maior e mais visível. Também não é uma mera reprodução do grande – aquela ideia de que o macro se repete no micro. Ele é muitos em um só. Guarda muitos mundos dentro.

As pequenas coisas do nosso cotidiano são tão desprezíveis, tão pouco valorizadas, que acabam esvaziadas de sentido. E o que está esvaziado de sentido pode ser aquilo que a imaginação quiser. Responde à lógica do observador.

Vira matéria de poesia.

E é por isso que crianças e poetas vêm tanto valor no lixo, no que já foi descartado e significa quase nada.

Hoje vejo aquele ingênuo exercício infantil como um importante exercício para a vida. O exercício do encontro, de estar diante de um mundo que não é o meu e tentar desvendá-lo.

O temor de insetos, aranhas e ciscos passou. Revelou-se puro medo infantil.

Quanto às bolhas de sabão...

Chamam-se, agora, FOTOGRAFIAS – e seu potencial explosivo!


(1) Fotografia de meu acervo pessoal, 1980.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Sujos quintais com tesouros


Arquivos, sujos quintais com tesouros. (1)

No final dos anos 1930, Walter Benjamin chamou a atenção para a mudança crucial pela qual passou a sociedade moderna – uma mudança perceptiva, em que a possibilidade de contemplação deu lugar a uma experiência fragmentada e desatenta, em que prevalece o olhar distraído.

Isso se deu na recepção da obra de arte, mas não apenas. É a marca determinante da experiência urbana (2). Mergulhado na multidão e sobrecarregado por uma miríade de estímulos sensoriais, muitos deles óticos, resta ao homem moderno dirigir sua atenção para um ou outro desses estímulos – aquele que, porventura, consiga sobressair-se em meio à profusão de outros tantos.


Se isso foi o que Benjamin observou sobre a Paris de seu tempo, o que dizer de uma megalópole como São Paulo?


O fato é que, contemporaneamente, ainda podemos reconhecer em nossa experiência muito do que Benjamin apontou: somos envolvidos por um fluxo que raramente nos permite um contato mais profundo com as coisas. Andamos, na maior parte das vezes, apressados, desatentos, acostumados.  Sem tempo e sem disponibilidade emocional para tentar quebrar o tráfego acelerado que marca a experiência urbana.


Diante dessa circunstância, duas questões me parecem fundamentais.


A primeira: se nosso olhar é seletivo, e atentamos apenas para os estímulos que conseguem se sobressair, o que seria aquilo que deixa de ser visto?


A segunda: esse modo – desatento e superficial – de relacionamento com a cidade não acabou por contaminar outras esferas de nossa experiência?


Afinal, para o que não olhamos? O que deixamos de ver?


Não olhamos o velho, o sujo, o perdido, o pequeno. O que está na valeta, nos esgotos, no lixo. O que está na gaveta. O que não faz diferença. O que não tem serventia. O desbotado, o indefinido, o que deixou de ser. O que está na margem, o que está na sombra. O arranhado, o pouco, o rasgado.


As “pobres coisas do chão mijadas / de orvalho”, como diria o poeta Manoel de Barros (3).


De todas as esferas que se ressentiram desse modo de olhar e sentir, a meu ver, a que mais tem sido atacada é a memória – pessoal e coletiva.


Desatentamente lidamos com o passado e com as marcas que ele deixou. E, assim, vemos, com alguma estupefação, prédios históricos serem “devorados” pela ânsia por lucros e acervos pessoais e coletivos serem esquecidos em gavetas de armários ou em museus.


É por isso que meu olhar se volta para meu acervo pessoal: para extrair o que nele ainda há de vida. O que nele ainda dialoga com o que sou.


Como um flâneur, que mergulha na multidão para nela viver o contraponto da desatenção, pretendo mergulhar no meu acervo familiar, que se encontra, como tantos outros, em situação de gaveta, na certeza de que ali, naquele sujo quintal, pode se esconder um tesouro.


Observação: o título foi apropriado do seguinte trecho de Clarice Lispector: “(...) levianamente eu concluíra pela moral oposta: alguma coisa sobre o tesouro que se disfarça, que está onde menos se espera, que é só descobrir, acho que falei em sujos quintais com tesouros.” (“Os desastres de Sofia”. In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1996.)



(1) Fotografias de meu acervo pessoal, durante processo de higienização.
(2) MARQUES, Susana Lourenço. Cópia e apropriação da obra de arte na modernidade (mestrado). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2007.
(3) BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, p. 343.